A Chave de Casa - Tatiana Salem Levy

Literatura brasileiraTatiana Salem Levy - A Chave de Casa - Editora Record - 208 páginas - Publicação 2007.

O que surpreende nesta autora é a segurança e maturidade logo no primeiro romance, lidando com sua "autoficção" e estilhaços de memória em uma narrativa polifônica, bem ao estilo do mestre Lobo Antunes. A autora/personagem ganha de seu avô uma chave da casa em que ele morou na Turquia, antes de vir ao Brasil, e o pedido de que retorne à cidade turca de Esmirna para encontrar a casa e parentes judeus. A narrativa passa por épocas diferentes da vida da personagem: a chegada de seu avô ao Brasil, momentos dolorosos de seus pais durante a ditadura militar, o seu relacionamento intenso com um homem violento, a sua viagem à Turquia e a sofrida morte da mãe.

No parágrafo de abertura Tatiana deixa clara a responsabilidade que enfrenta por carregar a história de sua ascendência: "Escrevo com as mãos atadas. Na concretude imóvel do meu quarto, de onde não saio há longo tempo. Escrevo sem poder escrever e: por isso escrevo. De resto, não saberia o que fazer com este corpo que, desde a sua chegada ao mundo, não consegue sair do lugar. Porque eu já nasci velha, numa cadeira de rodas, com as pernas enguiçadas, os braços ressequidos. Nasci com cheiro de terra úmida, o bafo de tempos antigos sobre o meu dorso. Por mais estranho que isso possa parecer, a verdade é que nasci com os pés na cova. Não falo de aparência física, mas de um peso que carrego nas costas, um peso que me endurece os ombros e me torce o pescoço, que me deixa dias a fio – às vezes um, dois meses – com a cabeça no mesmo lugar. Um peso que não é de todo meu, pois já nasci com ele. Como se toda vez em que digo “eu” estivesse dizendo “nós”. Nunca falo sozinha, falo sempre na companhia desse sopro que me segue desde o primeiro dia."

Me identifiquei muito com os momentos de despedida da mãe, que sofre de uma doença incurável, passagens tristes e verdadeiras: "Você estava sentada no sofá com ar de derrota quando me aproximei e sussurrei em seu ouvido: não faz mal. Se tiver de mudar o mundo, iremos juntas. Não importa aonde for, faremos outro pacto e, se mais tarde for preciso, outro, e depois outro e outro. Faremos quantos pactos forem necessários, mudaremos de mundo quantas vezes nos exigirem, mas uma coisa é certa: minhas mãos estarão sempre coladas às suas."

Tatiana Salem Levy é escritora, tradutora e doutora em Estudos de Literatura. Publicou o livro A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze (Relume Dumará) e contos na revista Ficções 11 (7 letras) e nas antologias Paralelos (Agir) e 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (Record). O romance de estréia A chave de casa ganhou o prêmio São Paulo de Literatura, autor estreante em 2008. A Chave de Casa foi publicado originalmente no primeiro semestre de 2007, em Portugal, pela editora Cotovia.


Comentários

nostodoslemos disse…
"Escrevo sem poder escrever e: por isso escrevo."

Somente por isto, já está em minha lista...
Ana R. disse…
Realmente o trecho dos momentos de despedida da mãe é lindo! Me identifiquei também! Preciso ler mais...:)
Abraços saudosos.
Raquel disse…
Fiquei emocionada com o segmento da despedida da mãe.
yehuda disse…
generoso e carinhoso, sua presença no meu YEHUDA é muito importante e lhe sou imensamente grato, ando claudicando, mas tentarei sempre continuar algo que preste
um abraço
Alexandre Kovacs disse…
Lígia, tenho certeza de que você vai gostar. Pode comprar!
Alexandre Kovacs disse…
Ana R., aquela passagem em que ela encontra a mãe desanimada no sofá, aconteceu exatamente assim comigo há alguns anos atrás.
Alexandre Kovacs disse…
Raquel, são passagens dolorosas do livro em que ela utiliza também a voz narrativa da mãe em diálogos imaginários.
Alexandre Kovacs disse…
yehuda, generosidade nenhuma, os seus textos dispensam elogios. Quem duvidar é só ler aqui: http://yehudabenelin.blogspot.com/2009/06/teatro.html
Leila Silva disse…
Muito lindo mesmo, vou prestar atenção nela.
Abraço
Alexandre Kovacs disse…
Leila, eu também já estou aguardando o próximo romance com interesse.
Kovacs, venho ouvindo sempre coisas boas da moca. As duas partes que voce selecionou sao realmente tocantes e transcendem a ficcao.

Vou procurar A Chave da Casa com certeza. A proposito terminei o Atonement do McEwan. Um livraco!

Abraco grande, Chico
Unknown disse…
Eu já li, e tive uma impressão bastante parecida. Hoje estou lendo a História da Evolução (Dawkins), e lá aprendi como os genes percorrem a história, utilizando-se do corpo humano. Aprendi também que eles podem ser 'lidos'.
E com isso concluo (!) que a nossa escritora herdou o gene da escrita do seu ascendente (não conhecendo outros membros da família, incorro - talvez - numa injustiça).
Mas ser um galho da árvore genealógica de Primo Levi, conta bastante, não?
Alexandre Kovacs disse…
Chico, fiquei surpreendido com a segurança da autora que, logo no primeiro romance, deu um show de sensibilidade literária.

Fico esperando a sua resenha do McEwan!
Alexandre Kovacs disse…
Djabal, uma árvore que tem galhos fortes como: Hanna Arendt, Isaac Bashevis Singer, Amós Oz, Moacyr Scliar e um tal de Erwin Maack(mais conhecido como Djabal Maat) só pode mesmo dar frutos como a Tatiana!
jugioli disse…
Este livro de Tatiana S. Levy, li o ano passado em Portugal, e realmente me surpreendeu.

Uma ótima referência de leitura.


bjs.

@dis-cursos
Alexandre Kovacs disse…
jugioli, o livro realmente foi lançado primeiro em Portugal pela editora Cotovia, ver em: http://www.livroscotovia.pt com uma bela foto da Tatiana.
Eliana BR disse…
Vou procurar o livro assim que chegar ao Brasil. Li recentemente sobre o mesmo tema o otimo Barrio Palestina, da paraguaia Susana Gertopan, estou escrevendo sobre A republica dos sonhos, de Nélida Pinon. Roteiros, roteiros, roteiros...
Abraços,
Eliana
Alexandre Kovacs disse…
Eliana, obrigado pela dica sobre a Susana Gertopan, vou tentar conhecer melhor. Deve ser ótimo poder trabalhar com literatura, melhor desenvolver roteiros do que relatórios!
Maria Augusta disse…
Os trechos citados, este peso que ela carrega, esta liberação pela escrita, estes elementos que você nos apresenta nos convidam a ler este livro, parece muito interessante.
Como sempre, excelente informação!
Um abração.
Alexandre Kovacs disse…
Maria Augusta, uma leitura muito prazerosa e você vai gostar com certeza. Obrigado pelo comentário.

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