Que grandes pessoas são os cães
(Vicente Aleixandre - Retratos con nombre 1958-1965)
Oh, sim, sei-o, bom "Sírio" quando me fitas com teus grandes olhos fundos.
Desço aonde estás, ou subo aonde estás
e em teu reino misturo-me contigo, bom "Sírio", meu bom cão, e salvo-me contigo.
Aqui em teu reino de serenidade e silêncio, onde a voz humana nunca se ouve,
converso no escurecer e entro profundamente em teu meio-dia.
Conduziste-me à tua morada, onde existe o tempo que nunca declina.
Um presente contínuo preside ao nosso diálogo, em que o falar é o teu somente.
Calo-me e contemplo-te silencioso, e levanto-me e olho-te. Oh quão profundos olhos conhecedores.
Mas não posso dizer-te nada, embora me compreendas... Oh, escuto-te.
Ali ouço o teu rude dizer e saber desde o próprio centro infinito do teu presente.
Tuas longas orelhas suavíssimas, teu corpo de soberania e força,
tua rude pata peluda que toca a matéria do mundo,
o arco de tua aparição e esses fundos olhos sossegados
onde a Criação jamais irrompeu como surpresa.
Ali, em tua gruta, em teu averno onde tudo é zénite, entendi-te, embora não pudesse falar-te
Tudo era festa em meu coração, que saltava à tua volta, enquanto eras o teu olhar a entender-me.
Do meu suceder e extinguir-me vejo-te, um instante parado à tua beira,
pretendo permanecer e reconhecer-me.
Mas passei, decorri e tu persistes.
Habitado em tua luz, imóvel em tua segurança, não pudeste mais que entender-me.
E saí de tua gruta e desci ao meu alvéolo viajante, e, ao voltar a cabeça no horizonte
vi, não sei, algo como uns olhos misericordiosos.
Ilustração de Ian Rees |
Comentários
Admiro teu amor pelos cães mas, embora, porém, contudo, entretanto, tem tanto tema mais prioritário neste mundo tão conturbado...
Até que o bichinho é bonitinho mas nunca pude (nem quis) tê-los.