Noemi Jaffe - Írisz: as orquídeas

Literatura brasileira
Noemi Jaffe - Írisz: as orquídeas - Editora Companhia das Letras - 224 páginas - Lançamento: 19/05/2015.

Esta é daquelas resenhas que já nascem com o senso objetivo comprometido, neste caso por dois motivos particulares: primeiro a ligação afetiva com o difícil idioma húngaro devido à minha ascendência (meu pai foi um entre tantos imigrantes húngaros). Em segundo lugar, o fato de eu ter morado por longos períodos no exterior em diferentes épocas da minha vida, muito recentemente por um ano no Japão. Logo, alguns dos elementos que funcionam como uma espécie de matéria-prima neste romance, como a adaptação do estrangeiro em uma terra distante, são próximos à minha experiência pessoal. É o caso de Írisz que vem morar em São Paulo fugindo de Budapeste após a frustrada revolta húngara de 1956, debelada violentamente pela União Soviética através do envio de tropas e tanques para a Hungria. 

A relação da protagonista com a descoberta do idioma português (outra língua-ilha como bem define a autora), o aprendizado da cultura brasileira e a sofrida ligação com seu país de origem são temas desenvolvidos com muita sensibilidade por Noemi Jaffe, como percebemos no trecho abaixo:
"Estar em um país estrangeiro e não saber falar a língua local é estar alheio e encapsulado no espaço, no tempo, no corpo e na alma. Na ignorância da língua, o estrangeiro é completamente estrangeiro. Ser estrangeiro é ser estranho — 'não pertencente a', e é do não pertencimento que vem a conotação negativa de 'estranho', palavra que não é originalmente pejorativa. (...) Não pertencer pode ser libertador e permitir aos estrangeiros viver num tempo mais lento, observador e menos comprometido com as funções e metas dos nativos, preocupados com tarefas em grande parte assumidas pela língua que dominam (e que os domina também). (...) O estrangeiro olha: não entende nada, mas entende algumas coisas melhor do que os locais: enxerga detalhes. Vê, no todo, as partes que já se incorporaram ao hábito do nativo e das quais ele não mais se dá conta." (págs 99 e 100).
Írisz é uma botânica que vem trabalhar no Brasil com orquídeas, essas peculiares flores de raízes aéreas que logo percebe, assim como ela, são frágeis e dependentes porque "brotam no ar, no alto de outros seres fincados na terra". É por meio dos inusitados relatórios técnicos sobre as orquídeas, preparados por Írisz, que nós e também Martim, diretor do Jardim Botânico de São Paulo e um comunista desiludido, ficamos conhecendo detalhes do seu passado na Hungria e a história dos que ficaram por lá.

Imre (típico nome húngaro, assim como Sandor que significa Alexandre), um amor que ela deixou e que ficou para lutar por uma revolução impossível, alguém que desejava a liberdade a qualquer custo, contudo Noemi Jaffe nos ensina como o desejo às vezes pode ser uma coisa enganosa nesta bela passagem: "Quando alguém acredita tanto na própria vontade, é preciso começar a duvidar, porque o desejo fica parecido com a fé." (pág. 27). 

Írisz abandona Imre e a mãe doente Eszter na Hungria. O misterioso pai, Ignác, de quem ela nada sabe desde que tinha seis anos é só uma lembrança distante. Segundo Írisz, "fugir é o lugar do homem e até ficar tantas vezes é fugir". A palavra que ela usa quando se encontra com Imre pela última vez é 'szia', uma expressão que tanto quer dizer "oi" como "tchau" no intrincado idioma húngaro. Trabalhando com os contrastes e significados da linguagem nos dois idiomas a autora acabou fazendo uma linda homenagem à literatura.
"A verdade é um punhado de palavras, só isso. E as palavras, que deveriam ter pouca importância, que deveriam ser versáteis, elas não são; elas se fixam e grudam na pessoa, mais do que qualquer outra coisa. Mais do que os gestos, os fatos, os números ou os grandes acontecimentos. No fim das contas, a própria história se transforma em palavras." (pág. 205).
Sobre a autora: Noemi Jaffe nasceu em São Paulo, em 1962. Doutora em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo e crítica literária, é autora de "A verdadeira história do alfabeto", vencedor do prêmio Brasília de Literatura, e "O que os cegos estão sonhando?", entre outros.

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