Mia Couto - Mulheres de Cinzas

Literatura africana
Mia Couto - Mulheres de Cinzas - 344 páginas - Editora Companhia das Letras - Lançamento no Brasil 16/11/2015 (Leia aqui um trecho disponibilizado pela Editora).

Uma das citações mais bonitas de Mia Couto (e podem acreditar que são muitas) nos ensina que: "a descoberta de um lugar exige a temporária morte do viajante" (do seu romance "Venenos de Deus, Remédios do Diabo" de 2008), assim acontece com esta nova obra do autor, "Mulheres de Cinzas", primeiro volume de uma trilogia sobre um importante período da história de Moçambique e no qual, para apreciar toda a força poética do texto e a riqueza do folclore e costumes locais, precisamos abandonar a nossa herança cultural ocidental e urbana, assim como os conceitos transmitidos ao longo da história oficial da colonização portuguesa, ou seja, "morrer" um pouco, só assim a prosa mágica do autor, com o seu estilo que é um exercício contínuo de recriação da língua, poderá ganhar o merecido espaço e ser "descoberta" pelo leitor, nada mais do que um mero e abandonado viajante solitário.

Os eventos narrados no livro ocorrem em 1895, época em que Moçambique era dominada de um lado pelo governo colonial português, nem sempre presente e atuante, e do outro pelo líder do poderoso Estado de Gaza, imperador Ngunguyane (chamado de Gungunhane pelos portugueses), muito mais forte politicamente na região. O sargento português Germano de Melo, degradado pela monarquia como punição após participar de uma revolta republicana no Porto, é enviado para combater o "Leão de Gaza", como era conhecido Ngungunyane, e assume o controle de um quartel, localizado na vila de Nkokolani, que nada mais é do que uma decadente mistura de paiol de armas e cantina para venda de quinquilharias para os nativos. Ele é auxiliado por Imani, uma adolescente de quinze anos que foi criada por missionários portugueses e domina bem o idioma, servindo como intérprete para o militar. O relacionamento entre os dois irá se fortalecer à medida em que ambos encontram alívio e mútua compreensão em meio ao isolamento provocado pelos conflitos.

"O mundo é tão grande que nele não cabe dono nenhum", mas mesmo assim o Império de Gaza e a Coroa Portuguesa se achavam proprietários da terra e por isso se odiavam tanto ("por serem tão parecidos nas suas intenções"). A família de Imani, da etnia VaChopi, era um símbolo dos conflitos na região porque, apesar de seguir os costumes ocidentais, tendo se aliado aos portugueses, apresentava uma grave divisão política interna já que um dos irmãos de Imani tinha o sonho de apoiar as forças de ocupação portuguesas enquanto o outro queria se unir ao exército de Ngungunyane. Na verdade, tanto Imani quanto o sargento Germano de Melo são indivíduos não adaptados ao próprio meio em que vivem e a narrativa é dividida entre as duas vozes alternadas, mas o tom predominante é mesmo o feminino como podemos constatar na bela passagem abaixo que mostra como os pobres e as mulheres são sempre mais afetados pelas guerras:
"A diferença entre a Guerra e a Paz é a seguinte: na Guerra, os pobres são os primeiros a serem mortos; na Paz, os pobres são os primeiros a morrer. Para nós, mulheres, há ainda uma outra diferença: na Guerra, passamos a ser violadas por quem não conhecemos." (pág. 107)
Mia Couto alerta para a destruição da terra por meio das guerras contínuas e também do progresso não planejado em um jovem país dividido por línguas e culturas diferentes, fato tão comum no continente africano. Também a necessidade de conhecer o passado para entender o presente, nesta entrevista ele afirma que os moçambicanos continuam "ainda prisioneiros de uma versão única do passado" e que precisam se libertar de uma narrativa solitária para assumir que existem outras versões e que todas podem ser válidas para explicar a diversidade atual.
"A estrada é uma espada. A sua lâmina rasga o corpo da terra. Não tarda que a nossa nação seja um emaranhado de cicatrizes, um mapa feito de tantos golpes que nos orgulharemos mais das feridas que do intacto corpo que ainda conseguirmos salvar." (pág. 11)
O livro representa um esforço de humanização de personagens históricos muito pouco conhecidos no Brasil. O último imperador de Gaza, Ngungunyane, foi capturado em 1895 por Mouzinho de Albuquerque quando o seu império já não tinha a força do passado e o domínio dos territórios conquistados, mas Portugal precisava demonstrar às demais potências coloniais européias, principalmente a Inglaterra, que ainda mantinha o controle sobre a colônia africana e levou Ngungunyane e suas sete esposas para Lisboa como propaganda política tendo sido posteriormente deportado para os Açores, onde veio a morrer em 1906. Os seus restos mortais foram trasladados para Moçambique em 1985. Na época, a imprensa moçambicana divulgou que na urna funerária só havia areia colhida em solo português, originando a ideia do título da trilogia, "As Areias do Imperador", que será completada com o lançamento dos dois próximos romances da série em 2016 e 2017.

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