Mia Couto - Vozes Anoitecidas

Literatura contemporânea africana
Mia Couto - Vozes Anoitecidas - Editora Companhia das Letras - 152 Páginas - Lançamento no Brasil: 17/10/2013.

Publicado originalmente em 1987, "Vozes Anoitecidas" foi a primeira coletânea de contos de Mia Couto. Na época, já conhecido como jornalista e poeta, ele surpreendeu público e crítica com as doze narrativas deste livro, onde já estavam presentes todos os elementos que marcaram o estilo único do escritor moçambicano ao longo de sua carreira que culminou com o recebimento do prêmio Camões em 2013. Aqui encontramos o exercício de recriação da linguagem e a invenção de palavras que lembra muito o nosso Guimarães Rosa, utilizando uma mistura de poesia e sonoridade do português coloquial da África, sempre norteado pela preocupação com os problemas sociais que ficam evidentes quando se faz a ligação entre a rica tradição do folclore e a dura realidade atual das ex-colônias. Como bem definiu o poeta conterrâneo José Craveirinha no prefácio à edição portuguesa, "Mia Couto maneja a linguagem das suas figuras legitimando a transgressão lexical de uma fala estrangeira com o direito que lhe permite o seu papel de parente vivo de Vozes anoitecidas". No entanto, é o próprio autor que melhor resume a importância da sua arte como um marco na resistência à exploração de Moçambique, assim como de outros países do terceiro mundo, por meio da bela introdução abaixo:
"O que mais dói na miséria é a ignorância que ela tem de si mesma. Confrontados com a ausência de tudo, os homens abstêm-se do sonho, desarmando-se do desejo de serem outros. Existe no nada essa ilusão de plenitude que faz parar a vida e anoitecer as vozes.  (...) Estas estórias desadormeceram em mim sempre a partir de qualquer coisa acontecida de verdade mas que me foi contada como se tivesse ocorrido na outra margem do mundo. Na travessia dessa fronteira de sombra escutei vozes que vazaram o sol. Outras foram asas no meu voo de escrever. A umas e outras dedico este desejo de contar e de inventar." (Texto de Abertura - pág. 17)
Assim, constatamos que através das múltiplas vozes "que vazaram o sol" encontramos a mais pura literatura e ainda muito mais, a persistência do desejo e da necessidade ancestral do homem de sonhar, mesmo diante da adversidade e da incompreensão da sua vida em um meio hostil. No conto "A fogueira", os protagonistas se resumem a uma velha e um velho presos a uma solidão que só a morte poderá libertar. É o conto de abertura desta coletânea que decidi apresentar completo, presente para os leitores que se beneficiam da minha impossibilidade de resumir e explicar tamanha força de contar e inventar. Não há resenha que dê jeito. Só lendo para sentir e entender a prosa mágica de Mia Couto.

 A fogueira 
(Mia Couto)

    A velha estava sentada na esteira, parada na espera do homem saído no mato. As pernas sofriam o cansaço de duas vezes: dos caminhos idosos e dos tempos caminhados. 
    A fortuna dela estava espalhada pelo chão: tigelas, cestas, pilão. Em volta era o nada, mesmo o vento estava sozinho.
    O velho foi chegando, vagaroso como era seu costume. Pastoreava suas tristezas desde que os filhos mais novos foram na estrada sem regresso.
    “Meu marido está diminuir”, pensou ela. “É uma sombra.”
    Sombra, sim. Mas só da alma porque o corpo quase que não tinha. O velho chegou mais perto e arrumou a sua magreza na esteira vizinha. Levantou o rosto e, sem olhar a mulher, disse:
    — Estou a pensar. 
    — É o quê, marido? 
    — Se tu morres como é que eu, sozinho, doente e sem as forças, como é que eu vou‑lhe enterrar?
Passou os dedos magros pela palha do assento e continuou:
    — Somos pobres, só temos nadas. Nem ninguém não temos. É melhor começar já a abrir a tua cova, mulher.
    A mulher, comovida, sorriu: 
    — Como és bom marido! Tive sorte no homem da minha vida. O velho ficou calado, pensativo. Só mais tarde a sua boca teve ocasião:
    — Vou ver se encontro uma pá.
    — Onde podes levar uma pá?
    — Vou ver na cantina.
    — Vais daqui até na cantina? É uma distância.
    — Hei de vir da parte da noite.
    Todo o silêncio ficou calado para ela escutar o regresso do marido. Farrapos de poeira demoravam o último sol, quando ele voltou.
    — Então, marido?
    — Foi muito caríssima — e levantou a pá para melhor a acusar.
    — Amanhã de manhã começo o serviço de covar.
    E deitaram‑se, afastados. Ela, com suavidade, interrompeu‑lhe o adormecer:
    — Mas, marido...
    — Diz lá.
    — Eu nem estou doente.
    — Deve ser que estás. Você és muito velha.
    — Pode ser — concordou ela. E adormeceram. 
    Ao outro dia, de manhã, ele olhava‑a intensamente.
    — Estou a medir o seu tamanho. Afinal, você é maior que eu pensava.
    — Nada, sou pequena.
    Ela foi à lenha e arrancou alguns toros.
    — A lenha está para acabar, marido. Vou no mato levar mais.
    — Vai mulher. Eu vou ficar covar seu cemitério.
    Ela já se afastava quando um gesto a prendeu à capulana e, assim como estava, de costas para ele, disse:
    — Olha, velho. Estou pedir uma coisa...
    — Queres o quê?
    — Cova pouco fundo. Quero ficar em cima, perto do chão, tocar a vida quase um bocadinho.
    — Está certo. Não lhe vou pisar com muita terra.
    Durante duas semanas o velho dedicou‑se ao buraco. Quanto mais perto do fim mais se demorava. Foi de repente, vieram as chuvas. A campa ficou cheia de água, parecia um charco sem respeito. O velho amaldiçoou as nuvens e os céus que as trouxeram.
    — Não fala asneiras, vai ser dado o castigo — aconselhou ela. Choveram mais dias e as paredes da cova ruíram. O velho atravessou o seu chão e olhou o estrago. Ali mesmo decidiu continuar. Molhado, sob o rio da chuva, o velho descia e subia, levantando cada vez mais gemidos e menos terra.
    — Sai da chuva, marido. Você não aguenta, assim.
   — Não barulha, mulher — ordenou o velho. De quando em quando parava para olhar o cinzento do céu. Queria saber quem teria mais serviço, se ele se a chuva.
    No dia seguinte o velho foi acordado pelos seus ossos que o puxavam para dentro do corpo dorido.
    — Estou a doer‑me, mulher. Já não aguento levantar.
    A mulher virou‑se para ele e limpou‑lhe o suor do rosto.
    — Você está cheio com a febre. Foi a chuva que apanhaste.
    — Não é, mulher. Foi que dormi perto da fogueira.
    — Qual fogueira?
    Ele respondeu um gemido. A velha assustou‑se: qual o fogo que o homem vira? Se nenhum não haviam acendido?
    Levantou‑se para lhe chegar a tigela com a papa de milho. Quando se virou já ele estava de pé, procurando a pá. Pegou nela e arrastou‑se para fora de casa. De dois em dois passos parava para se apoiar.
    — Marido, não vai assim. Come primeiro.
    Ele acenou um gesto bêbado. A velha insistiu:
    — Você está esquerdear, direitar. Descansa lá um bocado.
    Ele estava já dentro do buraco e preparava‑se para retomar a obra. A febre castigava‑lhe a teimosia, as tonturas dançando com os lados do mundo. De repente, gritou‑se num desespero:
    — Mulher, ajuda‑me.
Caiu como um ramo cortado, uma nuvem rasgada. A velha acorreu para o socorrer.
    — Estás muito doente.
Puxando‑o pelos braços ela trouxe‑o para a esteira. Ele ficou deitado a respirar. A vida dele estava toda ali, repartida nas costelas que subiam e desciam. Neste deserto solitário, a morte é um simples deslizar, um recolher de asas. Não é um rasgão violento como nos lugares onde a vida brilha.
    — Mulher — disse ele com voz desaparecida. — Não lhe posso deixar assim.
    — Estás a pensar o quê?
    — Não posso deixar aquela campa sem proveito. Tenho que matar‑te.
    — É verdade, marido. Você teve tanto trabalho para fazer aquele buraco. É uma pena ficar assim.
    — Sim, hei de matar você; hoje não, falta‑me o corpo.
    Ela ajudou‑o a erguer‑se e serviu‑lhe uma chávena de chá.
    — Bebe, homem. Bebe para ficar bom, amanhã precisas da força.
    O velho adormeceu, a mulher sentou‑se à porta. Na sombra do seu descanso viu o sol vazar, lento rei das luzes. Pensou no dia e riu‑se dos contrários: ela, cujo nascimento faltara nas datas, tinha já o seu fim marcado. Quando a lua começou a acender as árvores do mato ela inclinou‑se e adormeceu. Sonhou dali para muito longe: vieram os filhos, os mortos e os vivos, a machamba encheu‑se de produtos, os olhos a escorregarem no verde. O velho estava no centro, gravatado, contando as histórias, mentira quase todas. Estavam ali os todos, os filhos e os netos. Estava ali a vida a continuar‑se, grávida de promessas. Naquela roda feliz, todos acreditavam na verdade dos velhos, todos tinham sempre razão, nenhuma mãe abria a sua carne para a morte. Os ruídos da manhã foram‑na chamando para fora de si, ela negando abandonar aquele sonho, pediu com tanta devoção como pedira à vida que não lhe roubasse os filhos.
    Procurou na penumbra o braço do marido para acrescentar força naquela tremura que sentia. Quando a sua mão encontrou o corpo do companheiro viu que estava frio, tão frio que parecia que, desta vez, ele adormecera longe dessa fogueira que ninguém nunca acendera.

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