David Mitchell - Atlas de Nuvens

Literatura inglesa
David Mitchell - Atlas de Nuvens - Editora Companhia das Letras - 544 páginas - Tradução de Paulo Henriques Britto - Lançamento no Brasil: 26/07/2016

Já faz algum tempo que não me divertia tanto com um romance, ou melhor dizendo, não apenas um, mas seis romances em um só, ambientados em várias regiões do mundo e diferentes épocas, do passado ao futuro, com múltiplas técnicas narrativas e improváveis elementos de ligação entre todas as partes, porque "Atlas de Nuvens" é exatamente isso, configurando um virtuosismo literário invejável do inglês David Mitchell ao conduzir a ambiciosa arquitetura do livro e manter a atenção e interesse do leitor ao longo de mais de quinhentas páginas nessa catedral ficcional, se é que podemos chamar assim. Mas não imaginem que se trata de uma exibição gratuita de habilidade de escritor sem proveito para o leitor comum, muito pelo contrário, o livro é contagiante e difícil de interromper porque cada parte, ou capítulo, termina em suspenso (sempre em algum tipo de situação limite) para dar início a uma nova narrativa, continuando mais adiante e assim sucessivamente.

Durante a leitura ficamos imaginando como será possível levar a cabo a tarefa hercúlea de finalizar a obra com alguma coerência, tantos são os personagens e tramas paralelas, ou mesmo se o autor terá que apelar para soluções simplistas, no entanto devo admitir que a conclusão de cada uma das partes é brilhante e tão criativa quanto o desenvolvimento da estrutura, não deixando o leitor frustrado em nenhum momento. O livro "Cloud Atlas", lançado originalmente em 2004 e finalista do Man Booker Prize daquele ano, foi adaptado para o cinema em 2012 (no Brasil com o título de "A viagem"), dirigido pelas irmãs Warchowski e com um elenco formado por Tom Hanks, Helle Berry e Hugh Grant. Não assisti ao filme até hoje para não comprometer a experiência da leitura e agora fico com receio de alterar a minha percepção do livro. Alguém que tenha assistido pode comentar sobre o filme?

A primeira parte, "Diário de viagem ao Pacífico de Adam Ewing", como sugere o título, é narrada em forma de diário, contando as aventuras de um tabelião americano em 1850 nas ilhas Chatham localizadas no Pacífico Sul, próximas à Nova Zelândia. Ele fica conhecendo a história (verídica) dos nativos dessas ilhas chamados de morioris que foram dizimados e escravizados pelos maoris da Nova Zelândia, assim como pelos colonizadores europeus. Adam Ewing, que retornava da Austrália, passa somente alguns dias em terra firme nas ilhas enquanto aguarda os reparos na embarcação Prophetess e faz amizade com o dr. Henry Goose, um médico aventureiro que conhece bem a região. Ambos embarcam no navio, juntamente com um escravo moriori clandestino. A técnica utilizada pelo autor neste primeiro capítulo lembra os textos de autores clássicos de aventuras, como Herman Melville (Moby Dick) e Daniel Defoe (Robinson Crusoé).
"Partimos ao nascer do sol, embora a sexta-feira seja vista como dia azarento pelos marinheiros (Resmunga o capitão Molyneux: 'Superstições, dias de santos e outras sandices ficam muito bem em comadres papistas, mas eu estou aqui para ganhar dinheiro!') Eu e Henry não ousamos subir ao convés, pois todos os marujos estavam às voltas com o cordame e há um vento sul forte, com mar agitado; o navio esteve em apuros ontem e não o está menos hoje. Passamos metade do dia arrumando a botica de Henry. Além dos petrechos de um médico moderno, meu amigo possui vários tomos doutos, em inglês, latim e alemão. Numa caixa há um continuum de pós em frascos arrolhados, com rótulo em grego. Com componentes tais ele prepara várias pílulas e unguentos. Olhamos pela escotilha por volta do meio-dia, e as ilhas Chatham eram manchas de tinta no horizonte plúmbeo, porém o intenso balanço do navio é um perigo para aqueles que passaram uma semana em terra firme." (pág. 30)
A segunda parte, "Cartas de Zedelghem", nos apresenta um jovem e brilhante músico inglês chamado Robert Frobisher em 1931. Ele foi deserdado pelo pai e, sendo perseguido por uma série de escândalos e dívidas na sociedade londrina, decide fugir para o interior da Bélgica onde trabalha como assistente de um famoso compositor inglês recluso, Vyvyan Ayrs, no castelo de Zedelghem. A convivência entre os dois faz com que o velho músico doente volte ao seu processo criativo, mas ao longo do processo Robert Frobisher tem um caso com Jocasta, a esposa de Vyvyan, e persegue também a bela filha do casal. Este capítulo é todo narrado por meio de cartas de Robert para o seu amante Rufus Sixsmith que ficou em Londres. Ao roubar livros raros da biblioteca de seus hospedes para vendê-los a colecionadores, Robert encontra uma antiga publicação sobre um diário no Pacífico Sul, enquanto desenvolve a sua própria composição, o "Sexteto Atlas de Nuvens"
"Tinha duas horas para matar. Tomei uma cerveja gelada num café, e mais uma, e mais uma, e fumei um maço inteiro de uns cigarros franceses deliciosos. O dinheiro de Jansch não é nenhum tesouro enterrado, mas Deus sabe que a sensação que tenho é de como se fosse. Depois encontrei uma igreja numa ruela (evitei os lugares mais turísticos para não correr o perigo de esbarrar em livreiros rancorosos), cheia de velas, sombras, mártires sofredores, incenso. Não entrava numa desde a manhã em que meu pai me pôs no olho da rua. A porta a toda hora abria e fechava . Entravam velhas corocas, acendiam velas, iam embora. O cadeado na caixa das esmolas era da melhor qualidade. As pessoas ajoelhadas rezavam, algumas mexendo os lábios. Eu as invejo, sério. Também invejo Deus, que conhece todos os segredos delas. A fé, o clube menos exclusivo do mundo, tem o porteiro mais esperto. Toda vez que entro nas portas escancaradas da fé, logo me vejo voltando para a rua. Esforcei-me ao máximo para ter pensamentos beatíficos, mas a toda hora minha cabeça voltava a dedilhar o corpo de Jocasta. Até mesmo os santos e mártires nos vitrais eram ligeiramente excitantes. Creio que tais pensamentos não me levam para mais perto do céu. O que acabou me enxotando da igreja foi um moteto de Bach — o coro até que não era abominável, mas a única esperança de salvação do organista seria um tiro nos miolos. Disse isso a ele, também — o tato e a moderação são são desejáveis na conversa fiada, mas quando o assunto é música é preciso falar sem papas na língua." (pág. 81)
A terceira parte, "Meias-vidas - O primeiro romance policial da série Luisa Rey" é toda ambientada na fictícia cidade de Buenas Yerbas, na California em 1975, "uma cidade que tem o pior de San Francisco e o pior de Los Angeles, um autêntico não lugar" e é lá que encontramos um dos protagonistas da última parte, Rufus Sixsmith, muitos anos depois do seu caso com Robert. Ele, já com sessenta e seis anos, é um cientista nuclear que escreve um relatório alertando para os riscos da construção de uma usina nuclear pela poderosa e corrupta corporação Seaboard Power Inc., o relatório aponta para falhas no novo reator Hidra e provoca o assassinato de Sixsmith. Luisa Rey é uma repórter que investiga a situação da usina e procura encontrar o relatório perdido, enquanto lê as antigas cartas de Zedelghem. David Mitchell agora nos apresenta um estilo clássico de romance policial americano de tirar o fôlego.
"Rufus Sixsmith, debruçado na varanda, calcula a velocidade de seu corpo quando ele atingir a calçada, dando fim a seus dilemas. O telefone toca no quarto escuro. Sixsmith não ousa atender. Ouve-se música de discoteca a todo volume vindo do apartamento ao lado, onde uma festa está no auge, e Sixsmith, aos sessenta e seis anos de idade, sente-se mais velho do que é. A poluição obscurece as estrelas, mas para o norte e para o sul, ao longo da orla marítima, Buenas Yerbas resplandece com seu bilhão de luzes. Para o oeste, a eternidade do Pacífico. Para o leste, a extensão nua, heroica, perniciosa, sacralizada, sedenta, enlouquecedora do continente americano. (...) Uma moça emerge da festa no apartamento ao lado e se debruça na varanda vizinha. Seu cabelo é bem cortado, seu vestido violeta é elegante, mas ela prece tomada por uma tristeza e uma solidão incuráveis. 'Proponha um pacto de morte, por que não?' Sixsmith não está pensando a sério, e também  não vai pular, se uma brasa de humor ainda arde nele." (pág. 95)
A quarta parte, "O pavoroso calvário de Timothy Cavendish", é a única passada em nossa época atual, onde acompanhamos a hilária trajetória do editor Timothy Cavendish de sessenta e cinco anos que, por uma série de enganos, acaba internado e aprisionado em uma clínica geriátrica chamada "Aurora House" onde sofre um derrame, no interior da Inglaterra. Abandonado pelo irmão nesta clínica, ele planeja uma fuga espetacular, juntamente com seus "amigos senis mortos vivos", como ele os chama, mas isto não será uma tarefa nada fácil. Uma narrativa muito bem humorada onde nos pegamos rindo sozinhos das peripécias do protagonista. Uma das poucas leituras que Cavendish tem acesso neste período é o primeiro romance policial da série Luisa Rey encaminhado para a sua editora e que parece ser "publicável".
"O plano de Ernie era uma sequência altamente arriscada de dominós, um caindo sobre o outro. 'Qualquer estratégia de fuga', pontificou ele, 'tem que ser mais engenhosa do que os guardas.' E era mesmo engenhosa, para não dizer audaciosa, mas se um dos dominós não caísse sobre o outro o fracasso instantâneo teria consequências terríveis, principalmente se fosse verdade a macabra teoria de Ernie, de que estávamos sendo drogados. Olhando para trás, surpreendo-me comigo mesmo por ter concordado com aquilo. Sentia tanta gratidão por meus amigos estarem falando comigo outra vez, e uma vontade tão desesperada de sair da Aurora House — vivo —, que minha prudência natural se calou, é o que deve ter acontecido." (pág. 401)
A quinta parte, "Uma rogativa de Sonmi~451", nos apresenta uma distopia futurista, uma sociedade que utiliza clones humanos para desempenhar tarefas repetitivas ou perigosas. É o caso de Sonmi~451 que foi criada para servir a uma cadeia de lanchonetes na Asia, uma espécie de McDonald's do futuro chamada de Papa Song Corp. Neste capítulo toda a narrativa é feita seguindo o interrogatório de Sonmi~451, no qual ela conta em detalhes como se rebelou contra a forma impiedosa com que os clones eram escravizados e acabou participando de um movimento terrorista contra o regime totalitário. Uma fábula que tem algo de profético na forma como nossas sociedades evoluem para o futuro.
"Era uma cúpula fechada com cerca de oitenta metros de diâmetro, uma comedoria de propriedade da Papa Song Corp. As servidoras passam doze anos trabalhando sem jamais sair daquele espaço, jamais. A decoração é de estrelas e listras em tons de vermelho, amarelo e sol nascente. A celsius é ajustada ao nosso Exterior; mais quente no inverno, mais fresca no verão. Nossa comedoria ficava no menos-nono andar, debaixo da Chongmyo Plaza. Em vez de janelas, as paredes eram enfeitadas com AdVs. Na parede leste ficava o elevador da comedoria; era a única entrada e saída. A norte, o escritório do Vedor; a oeste, a sala dos seus Auxiliares; a sul, a dormidoria das servidoras. Os igienizadores dos consumidores eram ingressados a nordeste, sudeste, sudoeste e noroeste. O Eixo ficava no centro. Ali os alimentandos pediam suas refeições; nós entrávamos seus pedidos, debitávamos suas Almas nas caixas, depois bandejávamos suas refeições. Sobre o Eixo eleva-se o Plinto do Papa Song's. Ali Ele performa suas cabriolas para divertir os alimentandos." (pág. 196)
A sexta parte, "O vau do Sloosha e o que deu adespois", um desafio para o tradutor Paulo Henriques Britto e uma verdadeira luta contra o corretor ortográfico para respeitar o vocabulário inventado por David Mitchell que pula para um futuro pós apocalíptico, uma curiosa civilização que sobreviveu à "Queda" em algumas ilhas do Pacífico, uma espécie de holocausto que transformou a humanidade em uma série de tribos que lutam entre si pela sobrevivência. Existe uma pequena chance para a retomada do progresso e uma civilização mais justa à partir de poucos sobreviventes, haverá esperança para a Terra?
"Não, a Nau num é coisa de mito não, é verdadosa, que nem eu e cês. Vi ela com esses meus olho aqui, ó, vinte vez ou mais. A Nau parecia na baía das Frota duas vez por ano, perto dos quinosso da primavera e do outono, quando dia e noite, os dois é igual. Repara que ela nunca que ia em nenhuma cidade de bugre, Honokaa, Hilo, Sota-vento, nunca. E sabe por que? Causa-que só nós aqui do Vale tem Civilação do nive dos Presciente, por isso. Eles num queria escambar com barbo não, desses que achava que a Nau era um poderoso deus-pássaro branco, essas coisa. A Nau era da cor do céu, por isso só dava pa ver ela quando já tava chegano bem pertim. Num tinha remo não, nem vela, nem psisava de vento nem corrente não, causa-que era movida pela ciença dos Antigo. Do tamanho duma ilhota das grande, da altura dum morro baixo, a Nau cabia duzenta-trezenta-quatrocenta gente, quem sabe um milhão?" (pág. 268)
Como resmunga uma das dezenas de personagens de David Mitchell ao longo do romance-catedral: "'Mas essa história já foi contada cem vezes antes!' como se pudesse haver alguma coisa que não tivesse sido feita cem mil vezes antes, entre Aristófanes e Andrew Debilloyd Webber! Como se a Arte fosse o Quê, e não o Como!". Concordo com ele, o que vale mesmo nessa coisa de literatura não é a história em si, mas a originalidade da forma com que ela é contada. O autor criou sem dúvida uma bela homenagem à aventura, aos romances e a Arte de uma forma geral, imperdível.

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