Arthur Rimbaud - Poesia Completa

Tradução de Ivo Barroso
Arthur Rimbaud - Poesia Completa - Editora Topbooks - 392 páginas - Publicação 1994 - Tradução, prefácio e organização de Ivo Barroso.

Arthur Rimbaud (1854-1891) representa com seus poemas revolucionários, ainda hoje, o verdadeiro espírito de modernidade na literatura. Sua obra se confunde com a marca de rebelde e maldito que Rimbaud soube encarnar como poucos. A sua precocidade é caso único na poesia, pois não se conhece outro autor que tenha escrito com tamanha profundidade e originalidade antes de completar vinte anos. Por outro lado, ele não conseguiu dar prosseguimento à vocação literária pois, após um romance tumultuado com o poeta Verlaine, nunca mais escreveu, tornando-se negociante e traficante de armas no norte da África e Oriente Médio, vindo a morrer de câncer aos 37 anos.

Esta edição apresenta um trabalho cuidadoso de tradução de Ivo Barroso que Antônio Houaiss, o tradutor de Ulisses de James Joyce, chamou de "reencarnação". O próprio Ivo Barroso definiu as premissas do espinhoso sacerdócio da tradução no seguinte trecho do prefácio:

"Em nosso trabalho, não tomamos liberdades com Rimbaud; mas houve passos em que, por já nos escassear tempo de vida ou paciência de espera, tivemos de "traí-lo". Nem sempre nos foi possível vertê-lo "sinfonicamente", ou seja, observando imagem sentido, metro e rima. Em alguns de seus poemas longos, principalmente da fase inicial, entre desfigurar ou simplificar demasiadamente o conteúdo para mantê-lo rimado, a exaustão nos levou a optar por uma transposição "de orquestra de câmara", ou seja, mantivemos a métrica mas sacrificamos a rima. Contudo, em 90% dos poemas a orquestra tradutória se apresenta au grand complet (...)"

Selecionei um exemplo que demosnstra bem a dificuldade de tradução mencionada por Ivo Barroso. Adicionei também as notas originais (parciais - por uma questão de espaço) desta edição, absolutamente necessárias, como se pode constatar abaixo.

Le châtiment de Tartufe
Tisonnant, tisonnant son coeur amoureux sous
Sa chaste robe noire, heureux, la main gantée,
Un jour qu'il s'en allait, effroyablement doux,
Jaune, bavant la foi de sa bouche édentée,

Un jour qu'il s'en allait, " Oremus ", - un Méchant
Le prit rudement par son oreille benoîte
Et lui jeta des mots affreux, en arrachant
Sa chaste robe noire autour de sa peau moite!

Châtiment !... Ses habits étaient déboutonnés,
Et le long chapelet des péchés pardonnés
S'égrenant dans son coeur, Saint Tartufe était pâle!...

Donc, il se confessait, priait, avec un râle!
L'homme se contenta d'emporter ses rabats...
- Peuh ! Tartufe était nu du haut jusques en bas!

O Castigo de Tartufo (1)

Na casta veste negra, atiçando, atiçando (2)
O amor no coração, feliz, mão enluvada, (3)
Um dia em que passava, horrivelmente brando,
Céreo, babando fé da boca desdentada, (4)

Um dia em que passava, "Oremus", - um Malvado (5)
Com rudeza o agarrou pela sagrada orelha
E nomes vis lançou-lhe, após ter arrancado
A casta veste negra à sua carne velha!

Castigo!... Os trajes seus estão desabotoados,
E o rosário sem fim dos pecados perdoados (6)
Desfia-se no chão... Tartufo perde a cor!...

E o santo se confessa, e reza, em estertor!
(7)

O homem só lhe arrancara o colarinho, e, em vez (8)
- Tartufo estava nu desde a cabeça aos pés!


(1) Tartufo é a personificação do hipócrita em Molière, onde o personagem, embora não seja padre, aparece sempre vestido de negro a fim de aparentar decoro e austeridade. Rimbaud utiliza-o como símbolo da hipocrisia sacerdotal, o indivíduo de aspecto piedoso mas lúbrico, que oculta sua sensualidade sob o véu (ou melhor, a batina) da candidez e do fervor religioso.

(2) O poema começa com um iterativo Tisonnant, tisonnant, que, para Steve Murphy, 'mima' verbalmente o ato masturbatório. Levando em conta essa exegese, mantivemos, na tradução, o verbo repetitivo, embora deslocado para o fim do verso. Tartufo está nu sob a batina, e, enquanto caminha pela rua com ares contritos, secretamente se masturba. Ao ser surpreendido por um "Malvado", que lhe arranca a batina pela gola, o Tartufo de Rimbaud se assusta e ejacula em plena via pública, praguejando e rezando diante de sua nudez revelada.

(3) Coeur, literalmente, é "coração", mas Rimbaud emprega a palavra no sentido especial de sexo (...). Mão enluvada é um eufemismo para o ato de masturbar (...).

(4) O verbo baver (babar) adquire significados especiais na sutil alquimia de Rimbaud e em alguns casos, segundo Jeancolas, está associado a esperma.

(5) Oremus (do latim, oremos, rezemos) evoca o vocabulário religioso do Tartufo de Molière e suas invocações à prece (...)

(6) Imagem arrojada de Rimbaud, que compara a ejaculação ao desfiar das contas de um rosário que rolassem pelo chão. Os pecados perdoados mostram a perseverança masturbatória do personagem, capaz de se autoperdoar indefinidamente.

(7) Para acentuar o impacto, Rimbaud chama Tartufo de Saint Tartufe, ironia que, indiretamente mantivemos com "E o Santo...".

(8) Rimbaud que se compraz na utilização de um vocabulário preciso e específico usou ses rabats, designativo do colarinho eclesiástico em francês. Numa das versões do poema, procuramos manter a especificidade terminológica e traduzimos por "volta", mas como o termo em português tem várias outras acepções e dificilmente informaria o leitor na compreensão imediata do texto, acabamos optando pelo genérico mas determinante "colarinho" (...).

Comentários

Barros (RBA) disse…
Conheço apenas poucos poemas de Rimbaud, os quais me deixaram estimulados a ler toda sua obra. Mas gostaria de saber sua opinião em termos comparativos com outros poetas de estilo similar.
Alexandre Kovacs disse…
Barros, na minha opinião Baudelaire (1821 - 1867), Mallarmé (1842-1898) e Verlaine (1844-1896) estão no mesmo nível de Rimbaud. Esta é uma questão para uma postagem específica sobre os poetas simbolistas franceses. Obrigado pela visita e comentário.
Anônimo disse…
Excelente artigo!
Fico deveras impressionada com sua capacidade de transmitir conhecimento literário e artístico de um modo geral, com tanta delicadeza, como se você, Kovacs, fosse (talvez seja) um enviado, um cuidador dos artistas, o que o eleva à casta de uma espécie de artista mor, aquele que enaltece os que criam.
Dizem os entendidos que cá temos o nosso Rimbaud na pele de Raduan Nassar que também desistiu da literatua deixando orfã uma legião de leitores e apreciadores de seu espetacular talento.
Desejo bom final de semana e que os deuses da arte lhe mantenham na rede.
Beijo querido.
Alexandre Kovacs disse…
Daisy, obrigado pelo seu comentário, como sempre muito gentil. É gratificante ganhar elogios de uma pessoa que entende de arte e literatura.

Acho que eu escrevo textos de divulgação parecidos com os que você fazia no "lendo.org". Bem que aquele trabalho podia continuar no seu próprio blog, por que não? Lembro especificamente de um ótimo texto que li por lá sobre o Raduan Nassar.

Mais uma vez obrigado, não preciso dizer que conto sempre com a sua presença aqui no meu mundo.
Anônimo disse…
Obrigada amigo. Mas o mestre é você.
Talvez eu comece um trabalho no Dai sobre escritores brasileiros dos séc. IX e XX. O incentivo tá valendo.
RENATA CORDEIRO disse…
É difícil sim. Tenho formação de tradutora, minha especialização foi poesia. É difícil, porém não é impossível. Tenho dois poeas do Rimbaud traduzidos no Blog: O Dorminhoco do Vale e Ofélia. Aparentemente, o que oferecia mais dificuldade foi o que saiu melhor: Ofélia. E fiz uma Antologia chamada Pequena Antologia de Poemas Franceses: de François Villon a Fernando Pessoa, queescreveu em francês, e inclui os quebequenses. Se quiser, me avise.
Ontem postei a resenha de um filme que vc deve ter visto, mas que e sempre se quer ver de novo. Apareça por lá:
wwwrenatacordeiro.blospot.com/
não há ponto depois de www
Abraços,
Renata Cordeiro
Alexandre Kovacs disse…
Renata, entendo que o trabalho do tradutor, principalmente na área de literatura e ainda mais especificamente em poesia é praticamente um sacerdócio.

Tenho interesse sim na antologia de poemas franceses, estou sempre interessado em tudo que se relaciona com literatura.

Com relação ao seu texto sobre "Asas do Desejo" e "Cidade dos Anjos" achei ótimo e tomei a liberdade de incluir um link para sua página aqui no meu mundo.
RENATA CORDEIRO disse…
Obrigada por me haver linkado. É uma honra.
Abraços a todos,
renata Cordeiro
Ana R. disse…
Saudade dos meus tempos de universidade....Rimbaud quantas vezes iluminou meus dias e noites....E é inevitável mencionar a riqueza da vida dessas pessoas...Imagine só produzir uma obra assim com tão pouca idade....Os tempos mudaram mesmo.
Você está lendo Equador....? Não li, mas sabe que vivi por 8 anos lá? Paisagem sublime!
Alexandre Kovacs disse…
Ana, acho que quanto mais desenvolvemos ferramentas, assim como a informática e Internet, mais preguiçosos ficamos. Não vejo outra explicação para o desperdício de recursos que temos atualmente e os resultados decepcionantes na área artística. O que poderia ter criado um autor como Tolstoi armado de um poderoso editor de textos?

Com relação ao romance Equador, também achei que se tratava do país, mas na verdade é uma referência à linha do Equador. Mais detalhes quando escrever a resenha...
vera maria disse…
Oba, resenha de Equador, que bom! A anna v já havia feito forte indicação, mas ainda não li, vou esperar para ver o que vc diz...:)
um abraço,
clara lopez
ah, rimbaud é dez mesmo :)
Alexandre Kovacs disse…
Clara, obrigado pela visita e consideração em relação à minha opinião. A resenha de Equador vai sair em breve.
RENATA CORDEIRO disse…
Eis-me de novo. Estou doente, de cama, só me resta teclar.
Postei sobre o filme Across the Universe.
Vá lá:
wwwrenatacordeiro.blogspot.com/
não há ponto depois de www
Um beijo,
RENATA MARIA PARREIRA CORDEIRO
Alexandre Kovacs disse…
Renata, obrigado pelo convite e melhoras!
Anônimo disse…
A dificuldade em traduzir Rimbaud aqui narrada foi também encontrada por Wallace Fowlie, que traduziu do original francês para o inglês em 1965 e 1966.

Catedrático da Duke University, nos EUA, Fowlie era professor de literatura francesa e exímio conhecedor do idioma francês.

Ele teve dificuldade em traduzir 20 palavras dos originais de Rimbaud. O jovem poeta usava muitas palavras do dialeto da região das Ardenas, norte da França, muitas de origem em vocábulos alemães.

Ele buscou ajuda em Louise Varèse, essposa americana do compositorr francês Edgar Varèse. O francês não conhecia os termos. Eles tentaram achar os significados possíveis.

Outro que ajudou Fowlie foi Henri Matarasso, autor de uma biografia de Rimbaud: "Vie d'Arthur Rimbaud" de 1962.

Matarasso presenteou Fowlie com o esboço que Picasso fez de Rimbaud, que Fowlie usou na capa de sua versão americana da obra de Rimbaud.

Essas e outras fantásticas estórias estão no sensacional "Rimbaud e Jim Morrison - Os Poetas Rebeldes" de Wallace Fowlie.

O livro analisa a obra de Rimbaud e sua influência na poesia de Jim Morrison e na música dos The Doors.

Ótimo livro.

Abraços

Allysson Oliveira - Goiânia
allyssonoliveira@yahoo.com.br
Alexandre Kovacs disse…
Caro Allysson, muito grato pelo interessante comentário, Rimbaud e Morrison são assuntos sempre discutidos por aqui. Seja bem-vindo!
Allysson Falcon disse…
Boa tarde Kovacs,

pois é, achei seu blog pesquisando sobre Rimbaud, quero comprar as obras completas.

Eu sempre fui fã dos DOORS e da poesia de Jim.

Lendo "An American Prayer" de Jim descobri Rimbaud.

Acabei de ler agora o excelente "Os Últimos Dias de Jim Morrison" de Philip Steele e acabei relendo em paralelo "Rimbaud e Jim Morrison" de Wallace Fowlie.

O livro de Steele é absolutamente emocionante. Li quase esperando que Jim se salvasse no fim.

Se você não leu recomendo essa leitura. Ela daria um ótimo post e certamente seria muito comentado.

Abraços,

Allysson Oliveira

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