Brasil: Uma Biografia - Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling

História do Brasil
Brasil: Uma Biografia - Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling - Editora Companhia das Letras - 792 páginas - Lançamento: 27/04/2015.

Não há dúvidas sobre o fato de estarmos vivendo um momento crítico e, talvez, transformador da nossa postura política, tanto por parte da sociedade quanto dos nossos representantes no Congresso. A urgência de saber mais sobre o Brasil e a trajetória que percorremos para chegar até aqui, torna a leitura desta "biografia" não autorizada muito oportuna. A interpretação do nosso passado, sendo ele remoto ou recente, muitas vezes se confunde com a ficção e o conhecimento de certas peculiaridades que influenciaram a formação da identidade nacional e do patrimônio artístico e cultural do nosso país não se apresenta como tarefa simples, mesmo para historiadores experientes, quanto mais para o leitor leigo que carrega na sua bagagem um conhecimento superficial aprendido na escola e muitas vezes manipulado ou produzido de acordo com interesses políticos e econômicos. As autoras, para contar uma nova história entre muitas outras possíveis, reuniram vasto material de referência, incluindo imagens, sem tornar o livro excessivamente acadêmico, seguindo um estilo iniciado por Boris Fausto e mais recentemente por Laurentino Gomes, autores que facilitam o entendimento do grande público, sem comprometer o rigor do fato histórico. 

O período coberto pelo livro tem início antes do descobrimento — ou "invasão" em uma interpretação mais moderna — e procura interpretar os principais ciclos econômicos ao longo de mais de quinhentos anos de história, o ciclo da cana, por exemplo, que estabeleceu o sistema escravocrata, também conhecido como
"infame comércio de almas", como base do sistema produtivo que possibilitou o desenvolvimento da colônia no período seiscentista, mas deixou marcas profundas e uma herança de violência em nossa sociedade que já nascia em um ambiente formado por contrastes brutais, uma mistura de paraíso e inferno na terra, representado pela "civilização do açúcar" e suas etapas produtivas nos engenhos: processamento da cana, transporte, manutenção e administração. Esta dependência da mão de obra escrava fez com que o Brasil fosse o último país a abolir a escravidão no Ocidente em 1888, uma das muitas razões para o racismo dissimulado que ainda persiste em nossa sociedade até o presente momento. 
"A essas alturas, o tráfico negreiro constituía um negócio dos mais lucrativos, e alguns senhores tinham mais interesse em 'repor' um escravo morto que em ajudar na longa e dispendiosa criação de sua 'propriedade'. Por sinal, a imagem difundida de que a escravidão brasileira teria sido mais amena que a norte-americana, uma vez que por lá teriam existido engenhos especializados na 'criação de escravos', é mais teórica do que real. Os motivos que explicam tal conduta nada têm de humanitários, e são o mais das vezes de ordem pragmática e comercial. Era custoso manter um escravo criança até que atingisse a idade produtiva. Portanto, melhor comprar um 'novo' nos mercados abertos das cidades, os quais expunham os africanos como peças, coisas e bens. Os preços também variavam conforme o 'uso': mulheres e crianças eram menos bem avaliadas que homens e adultos. Antes dos oito anos eram crianças, depois dos 35, velhos, pouco aproveitáveis no trabalho pesado da cana. O 'envelhecimento' ocorria cedo, assim como o fim da adolescência: a partir de oito anos e até os doze um escravo já era classificado como adulto (...) a civilização do açucar originou um local de extremos: o doce da cana se fez às custas do travo da escravidão. Um mundo verdadeiramente novo, no sentido de diferente, ia sendo criado. Amargo açúcar, ardida doçura." (págs. 77 e 78).
A transferência da família real, ameaçada por Napoleão na Europa e, consequentemente, a mudança da própria administração da metrópole para o Brasil, promovido à categoria de Reino Unido de Portugal e Algarves, é um dos fatos políticos mais marcantes da formação de nossa identidade nacional. Em 1808, a colônia transformava-se em sede do império português, uma inversão de valores nunca antes vista na história, e que provocou uma série de ações progressistas como a criação do Banco do Brasil no mesmo ano, além do banho de civilização recebido pela cidade do Rio de Janeiro. No entanto a logística para a mudança da corte e todo o aparato da monarquia não foi nada simples, envolvendo o transporte de aproximadamente 15 mil pessoas, assim como os transtornos decorrentes desta verdadeira população que enfrentou todo o tipo de problemas durante a travessia do Atlântico, desde a falta de acomodações e condições precárias de higiene a bordo das naus da esquadra portuguesa até a insuficiência de provisões.
"E o plano era complexo. Afinal seguiriam viagem, junto com os Bragança, alguns poucos funcionários selecionados, mas também várias famílias — as dos conselheiros e ministros de Estado, da nobreza, da corte e dos servidores da casa real. Não eram indivíduos isolados que fugiam às pressas, e sim a sede do Estado português que mudava de endereço, com seu aparelho administrativo e burocrático, seu tesouro, suas repartições, secretarias, tribunais, arquivos e funcionários. Acompanhava a rainha e o príncipe regente tudo aquilo que representasse a monarquia: os personagens, os paramentos, os costumeiros rituais de corte e cerimoniais religiosos, as instituições, o erário, os emblemas... Enfim todo o arsenal necessário para sustentar a dinastia e os negócios do governo de Portugal e a eles dar continuidade" (pág. 163).
A independência do Brasil, declarada por d. Pedro I em 1822, e o fim da monarquia foram eventos conduzidos surpreendentemente pela própria monarquia, como resultado de uma estratégia política de manutenção do poder, procedimento inusitado e inédito na história das colônias. A solução de continuidade "parecia uma contradição em seus próprios termos, dado que na conjuntura era difícil imaginar um processo de emancipação nas Américas sem prever, como decorrência, a instalação de um regime republicano". De qualquer forma, através de uma transição gradual e da implementação de uma "monarquia constitucional representativa", que ainda durou 67 anos, acabamos chegando à proclamação da república somente em 1889, encerrando a soberania de d. Pedro II e instituindo o marechal Deodoro da Fonseca como o primeiro presidente da república.

Outros marcos importantes foram os sucessivos governos da era Getúlio Vargas, o primeiro período de 1930 a 1945 que culminou na ditadura do Estado Novo e o período em que foi eleito democraticamente, de 1951 até o seu suicídio em 1954, fato que o eternizou na memória do povo como um herói da pátria. Não há como não admitir a importância dos avanços sociais (principalmente na área trabalhista) e entre os maiores feitos de Getúlio podemos destacar a criação da carteira de trabalho em 1932, os direitos trabalhistas da Constituição de 1934, a Companhia Siderúrgica Nacional em 1941, a Companhia Vale do Rio Doce em 1942, a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) em 1943, o BNDES em 1952 e finalmente o monopólio estatal do petróleo com a fundação da Petrobras em 1953.

O Plano de Metas, "cinquenta anos em cinco", de Juscelino Kubitscheck, foi certamente fundamental para o desenvolvimento do país e a inauguração de Brasília em 1960 o fruto de "uma conjunção rara de quatro loucuras: a de JK, de Israel Pinheiro, Niemeyer e Lúcio Costa" como bem resumiu Otto Lara Resende, mas o que definitivamente não poderia faltar em uma obra como esta foi o sofrido processo de redemocratização iniciado em 1985 com a eleição de Tancredo Neves pelo Colégio eleitoral, a posse forçada de José Sarney devido à inesperada morte de Tancredo e a eleição direta de Fernando Collor em 1989  a primeira realizada pelo voto popular desde 1961 — encerrando o longo período de governo dos militares que se alternaram no comando do poder Executivo, através dos generais: Castello Branco (1964-67), Costa e Silva (1967-69), Garrastazu Médici (1969-74), Ernesto Geisel (1974-79) e João Figueiredo (1979-85).
"Em 1975, as versões de suicídio divulgadas pelos militares tinham virado rotina: quase cinco meses antes da morte de Herzog, o tenente José Ferreira de Almeida também teria se suicidado na mesma cela, com outra tira de pano que não existia e na mesma posição. Pouco mas de dois meses após o assassinato de Herzog, a morte do operário Manoel Fiel Filho, nas dependências do Codi-DOI paulista, produziu versão idêntica. Fiel Filho foi o 39° caso de suicídio de prisioneiro político da ditadura e o 19º a se enforcar — em dois desses casos, os presos teriam se enforcados sentados." (pág. 472)
A história é contada até a eleição de 1994, conquistada por Fernando Henrique Cardoso devido ao plano Real (o livro oferece uma tabela cronológica muito prática em seu final que compara importantes marcos históricos do Brasil e do mundo) e chegamos finalmente aos eventos mais recentes com os governos sucessivos do PT, a partir da primeira eleição de Lula em 2003, sua reeleição em 2006 e os dois mandatos de Dilma Rousseff, desde 2011 até a crise de popularidade atual devido às investigações sobre o mensalão e da operação lava jato, escândalos que atingiram as lideranças do PT, Diretores da Petrobras e as principais empresas construtoras brasileiras. Um livro assim ficará sempre incompleto mas, por outro lado, nos leva a refletir sobre a importância do momento histórico que estamos vivendo e a responsabilidade de preservar os valores democráticos.

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