Umberto Eco - Número Zero

Literatura italiana
Umberto Eco - Número Zero - Editora Record - 208 páginas - tradução de Ivone Benedetti - Lançamento 2015 (Leia aqui um trecho em pdf disponibilizado pela Editora).

Definitivamente este não é o melhor romance de Umberto Eco, mas considero a sua leitura fundamental para os estudiosos e demais interessados nas áreas de Comunicação Social (Jornalismo) e História. O argumento tem como base a criação de um jornal de fachada com a função de produzir notícias tendenciosas para extorsão de elementos do "clube de elite das finanças e da política" sob a pretensa alegação de dizer a "verdade" acima de todas as coisas. Como podemos notar, apesar da ação ocorrer no ano de 1992 (época da famosa operação "Mãos Limpas" na Itália), o tema de manipulação das notícias é ainda bastante atual. O nosso protagonista, um ghost-writer sem maior expressão na área do jornalismo, chamado de Colonna, é contratado pelo editor chefe Simei como assistente de direção e responsável pela revisão de todos os textos, juntamente com seis outros redatores, para criar doze edições experimentais, chamadas de "número zero" para avaliação interna do novo jornal.

Um dos seis redatores, chamado Romano Braggadocio, resume bem o espírito do novo diário que deverá se chamar "Amanhã" com a seguinte definição: "Não são as notícias que fazem o jornal, e sim o jornal que faz as notícias". Por sinal, este é um personagem importante no romance, que desenvolverá uma complexa teoria conspiratória, envolvendo toda a história recente da Itália após a segunda Grande Guerra e tendo como gancho a sobrevivência de Benito Mussolini que aguardaria a retomada do poder, no seu esconderijo na Argentina (ou guardado pelos muros do Vaticano, em uma outra versão do mesmo e obcecado personagem). O autor utiliza com muita habilidade fatos históricos como parte do enredo, alguns revisitados com um tratamento ficcional (como o caso da sobrevivência de Mussolini e o assassinato de João Paulo I) assim como outros completamente verídicos (apesar de um surrealismo digno do nosso Brasil atual), tais como: as ações da organização direitista Gladio, corrupção política e interesses da máfia, loja maçônica P2 e atentados terroristas na Itália, fazendo com que o leitor fique em dúvida sobre o que é verdadeiro ou apenas ficção. O trecho abaixo reflete a visão de Braggadocio, um tanto o quanto obsessiva como o próprio personagem, sobre a sua desconfiança relativa à manipulação das notícias:
"Os jornais mentem, os historiadores mentem, a televisão hoje mente. Você não viu nos telejornais há um ano, com a Guerra do Golfo, o pelicano coberto de óleo, agonizando no golfo Pérsico? Depois foi apurado que naquela estação era impossível haver pelicanos no Golfo, e as imagens eram de oito anos antes, no tempo da Guerra Irã-Iraque. Ou então, como disseram outros, pegaram uns pelicanos no zoológico e lambuzaram de petróleo. O mesmo devem ter feito com os crimes fascistas. Veja bem, não é que me afeiçoei às ideias do meu pai ou do meu avô , nem quero fazer de conta que não houve massacre de judeus. Por outro lado alguns dos meus melhores amigos são judeus, imagine. Mas não confio em mais nada. Os americanos foram mesmo até a Lua? Não é impossível que tenham construído tudo num estúdio, se você observar as sombras dos astronautas depois da alunissagem não são verossímeis. E a guerra do Golfo aconteceu mesmo ou nos mostraram só trechos de velhos repertórios? Vivemos na mentira e, se você sabe que lhe estão mentindo, precisa viver desconfiado. Eu desconfio, desconfio sempre." (pág. 43)
A visão amarga do jornalismo cultural (leiam o trecho abaixo, cheio de sarcasmo bem-humorado sobre o lugar da cultura nas publicações atuais) também é apresentada por meio das aspirações da redatora Maia Fresia, "quase formada em letras", especializada na área de fofocas, e que mantem as esperanças de desenvolver um trabalho de melhor conteúdo no novo jornal. Na verdade, os únicos integrantes da equipe que conhecem as verdadeiras intenções do periódico são Colonna e o editor chefe Simei. Ambos tratam de diversos assuntos nas reuniões com a equipe para debater a pauta a ser seguida nas próximas edições, uma espécie de manual do mau jornalismo, como destacado em algumas resenhas deste romance (nem sempre "rancorosas" ou "prepotentes", sou obrigado a defender, talvez em causa própria).
"Não podemos tratar demais de cultura, os nossos leitores não leem livros, no máximo a 'Gazzetta dello Sport'. Mas, concordo, o jornal não pode deixar de ter uma página, não digo cultural, mas digamos de cultura e espetáculo. No entanto, os fatos culturais relevantes devem se apresentados em forma de entrevista. Entrevista com o autor é tranquilizadora, porque nenhum autor fala mal do próprio livro, portanto o nosso leitor não fica exposto a espinafrações rancorosas e prepotentes. Além disso, ele depende das perguntas, não se deve falar demais do livro, mas fazer o escritor ou escritora aparecer, quem sabe até com os seus tiques e fraquezas (...) Faça do maldito livro uma coisa humana que mesmo a dona de casa consiga entender, e assim não terá remorsos se não o ler; aliás, quem é que lê os livros que os jornais resenham, em geral nem o resenhista, isso quando o próprio autor o lê, porque, olhando certos livros, a gente às vezes acha que nem ele leu." (págs. 67 e 68)
O leitor de outras obras de Umberto Eco não encontrará neste seu último romance o mesmo brilhantismo literário e pesquisa histórica presentes em, por exemplo, "O Nome da Rosa" ou "O Pêndulo de Foucault", mas certamente será recompensado com alguns bons momentos de prazer ao reconhecer a erudição de um grande escritor que nos mostra como a mídia consegue distorcer a realidade por meio da publicação não de mentiras, mas sim de fatos absolutamente verídicos. Este procedimento foi tremendamente ampliado em nossa atualidade devido à ação das redes sociais, onde os próprios cidadãos se encarregam de insinuar, denegrir ou francamente inventar fatos em uma velocidade que nenhuma mídia (mesmo na internet) consegue acompanhar com a devida independência e verdadeiro espírito crítico.

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