Anne Enright - A Estrada Verde

Literatura Irlandesa
Anne Enright - A Estrada Verde - Grupo Companhia das Letras - Selo Alfaguara - 256 Páginas - Tradução de Débora Landsberg - Lançamento no Brasil: 08/06/2017 (Ler aqui um trecho disponibilizado pela Editora).

O reencontro de uma família irlandesa depois de muitos anos de afastamento é mais uma vez o tema de Anne Enright neste romance, um pano de fundo já utilizado com sucesso pela autora em "O Encontro", premiado com o Booker Prize de 2007. Em "A Estrada Verde", a narrativa em terceira pessoa descreve o efeito devastador da passagem do tempo, aproximadamente quatro décadas, na trajetória dos integrantes da família Madigan que retornam para a antiga casa de família no interior da Irlanda para comemorar o Natal. A matriarca Rosaleen vive sozinha e pretende comunicar aos quatro filhos: Constance, Dan, Emmet e Hanna, a sua decisão de vender a casa. O reencontro faz com que antigas relações de amor e ódio estejam novamente presentes e a reaproximação entre eles uma possibilidade cada vez mais remota. Será que a força dos laços familiares poderá superar as dificuldades e desentendimentos do passado?

É impossível pensar em famílias infelizes e não lembrar de Tolstoi na frase de abertura de Anna Kariênina, "Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira." Podemos dizer que os integrantes da família Madigan, cada um a seu modo, oferecem um destacado exemplo de infelicidade. O romance tem início na década de oitenta, quando Dan Madigan, já cursando o primeiro ano de faculdade, comunica à família, durante o jantar de domingo de Páscoa, a sua decisão de se tornar padre. Esta comunicação provoca grande consternação em sua mãe e fica evidente neste ponto, e em outras passagens do romance, que Dan é uma espécie de "filho predileto" de Rosaleen Madigan. Na verdade, o futuro de Dan será muito diferente do que imaginava, ele passa a viver em Nova York com a namorada Isabelle, mas logo assume a sua opção de homossexualidade em pleno turbilhão dos anos noventa quando a ameaça da aids era um terrível fantasma em todo o mundo, especialmente na comunidade gay.
"Este era o quinto ano de Dan na cidade de Nova York — a intenção era passar somente um. Chegou no verão de 1986 e foi morar com Isabelle, que estava lá desde maio. Um amigo arrumou uns expedientes noturnos num bar na avenida A e passava os dias empilhando e pegando caixas de sapato em um porão da Quinta Avenida. Depois de alguns meses lá embaixo, na escuridão, deixaram que subisse para o andar da loja e Dan fingiu ser bom em vender sapatos a fim de disfarçar o fato de que era mesmo ótimo em vender sapatos. Era um belo rapaz com sotaque fofo e olhar extraordinário. Na época do Natal, já era escolhido para levar Manolos emergenciais a sessões de fotos e caixas à casa dos clientes. Alguns desses clientes tentavam dormir com ele. Todos eram ricos, em sua maioria eram homens." - Dan - Nova York 1991 (Págs. 56 e 57)
Constance Madigan, a filha mais velha, ficou na Irlanda e assumiu uma versão tradicional de "dona de casa feliz" com marido financeiramente bem sucedido no ramo imobiliário e três filhos saudáveis. Ela é a filha que ficou mais próxima a Rosaleen (contraditoriamente, não a mais amada), cuidando dos aspectos práticos da casa à medida que a mãe envelhecia. No entanto, com apenas trinta e sete anos, enfrenta a expectativa de um possível diagnóstico de câncer no seio, o que faz com que ela questione a pretensa estabilidade de sua vida. Por sinal, o capítulo dedicado a Constance é um belo exemplo da prosa forte de Anne Enright que descreve toda a movimentação do hospital em sua rotina de exames, assim como as pacientes na terrível incerteza de um resultado negativo em contraponto com as reflexões da personagem sobre o seu presente e o futuro agora incerto, só este capítulo já vale por todo o romance.
"Não havia como saber quanto tempo cada mulher passaria na sala do outro lado do corredor. Algumas saíam e iam direto para a saída, mas caso uma mulher de jaleco branco surgisse primeiro, seguiam o envelope pardo grande que ela segurava e entravam em uma nova fila num banquinho mais adiante. Essas mulheres usavam camisolas hospitalares abertas nas costas e levavam as blusas e casacos numa cesta de compras que punham no chão, à sua frente. Algumas eram bem novinhas. Constance não era a mais nova ali naquela manhã, de jeito nenhum." - Constance - Condado de Limerick - 1997 (Pág. 70)
Cada capítulo do livro, centrado em um dos filhos, funciona como uma parte autônoma do romance, praticamente contos isolados. Emmet Madigan descobriu a sua vocação para trabalhar em missões humanitárias junto às populações carentes na Ásia e África até chegar em Mali, uma região de pobreza extrema no interior do continente africano quando tem início um relacionamento com a inglesa Alice que, assim como ele, tem uma estranha "atração pelo sofrimento". O convívio constante com locais cercados de violência e miséria, fazem com que Emmet  perca o contato com o seu próprio senso de humanidade. Atormentado pelas lembranças cruéis das atrocidades que presenciou, ele tem dificuldade de entender a sensibilidade da namorada e a possibilidade de amar.
"Foi perto da fronteira tailandesa, seu primeiro ano fora. A região era repleta de campos minados e os paramédicos faziam quinze, vinte amputações por dia. Jogavam os restos num monte do lado de fora da barraca hospitalar e, quando tinha um tempinho, uma das enfermeiras atirava nos cães que reviravam o lixo. Formavam equipes para fazer covas, mas havia latrinas a serem escavadas, e os cães não eram fatais como a diarreia. Portanto era difícil acreditar, mas virou realidade, que ao longo de pelo menos uma quinzena a única proteção que tinham contra tal sacrilégio era uma enfermeira campeã de tiro chamada Lisbette, de Auvérnia, que carregava uma pistola quando saía para fumar um cigarro." - Emmet - Ségou, Mali - 2002 (Pág. 123)
Não resta dúvida de que, dos quatro filhos da família Madigan, a caçula Hanna é a mais problemática. Vivendo em Dublin ela tenta compensar a frustração de uma carreira fracassada como atriz com as responsabilidades da maternidade por meio do consumo de muito álcool. Hanna é apresentada aos leitores no primeiro capítulo do romance que é narrado do ponto de vista dela, então uma menina de doze anos e volta a aparecer, com trinta e sete anos, em um dos capítulos finais por meio de um exercício narrativo de grande originalidade da autora, colocando-nos no meio da cozinha com a "bochecha grudada no chão" e uma poça de "sangue à altura dos olhos", um acidente doméstico provocado por uma das bebedeiras da personagem que tenta raciocinar, totalmente alcoolizada, sobre o que ocorreu com ela, preocupada com o bebê que dormia no quarto.
"Aos trinta e sete anos, os sonhos de Hanna eram abundantes - assim como seu hábito de beber, aliás - em aplausos. Ou vaias, com mais frequência. Deixas perdidas, objetos de cena esquecidos, medo de palco. Hanna usava a blusa do pijama com uma crinolina, estava na peça errada e mesmo na peça certa tinha esquecido de decorar as falas. Naquela noite, Hugh com um olhar inexpressivo, afundado no sofá, ela foi tateando a parede da sala de estar. Empurrou a bochecha contra ele e arrastou o rosto sem saber quem interpretava dessa vez. Alguma louca. Ofélia arruinada." - Dublin (Pág. 172)
A matriarca Rosaleen Madigan ressente-se por ter sido abandonada pelos filhos, solitária escreve cartões de Natal para cada um deles e relembra passagens de sua própria vida no Condado de Clare, localidade no interior da Irlanda. O reencontro familiar de Natal é uma chance de todos resolverem de alguma forma seus problemas e frustrações atuais e do passado. Um livro original do ponto de vista narrativo e com grande riqueza de detalhes, sobre crescimento, aprendizado e o amor na sua forma mais verdadeira. Muito recomendado.

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